sexta-feira, maio 23, 2014

Cannes 2014: pensar


Algumas formas contemporâneas de jornalismo distinguem-se por menosprezarem as potencialidades da sua própria inteligência. Assim, na edição de Nice-Cannes do jornal Metro, num texto identificado como "crítica" a Adieu au Langage, de Jean-Luc Godard, escreve-se que o filme é uma "purga". Que o autor do texto a considere "incompreensível", eis um problema do próprio, assumindo a palavra como necessariamente insultuosa. É pena que não encare o significado visceral da palavra "purga" — a saber: purificação.
HONORÉ DE BALZAC
1799-1850
Não será que está em jogo a possibilidade de purificação dos olhares na selva de (des)informação que passámos a habitar? O certo é que a prosa se mostra sinceramente carente de um objecto identificável — tipo: um filme que se chama Homem-Aranha não é sobre a aplicação de pesticidas na produção de ervilhas mas, felizmente, sobre essa coisa clara, inequívoca e apaziguadora que é o... Homem-Aranha!
O redactor sente-se, por isso, compelido a formular várias hipóteses sobre a "linguagem" que o título refere. Desorientado, pergunta mesmo se o filme será sobre a "[linguagem] do corpo? Do espírito? Da razão? Da natureza? Da espécie animal?..." Em boa verdade, só faltou acrescentar uma possibilidade sugestiva e, por certo, pedagógica: não poderá o filme visar também o jornalismo que não pensa? Ou que, pior do que isso, desistiu da possibilidade de pensar?
Ficamos, no entanto, a saber que Adieu au Langage é uma "história de amor incompreensível"... O que faz supor que os responsáveis pela escrita e difusão de tão requintadas palavras sabem, de um saber seguro, que as histórias de amor são sempre compreensíveis. Poderíamos refazer a pergunta que, algures num filme chamado Pierrot le Fou (1965), é lançada por Jean-Paul Belmondo: "Também já se esqueceram de Balzac?".