quinta-feira, agosto 17, 2017

Jacques Demy, aqui e agora (2/2)

A reposição de dois filmes de Jacques Demy é o grande evento cinéfilo deste Verão do nosso descontentamento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Agosto), com o título 'Quando a música é uma forma de erotismo'.

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Em boa verdade, já havia música em Lola, incluindo a célebre canção-tema interpretada por Anouk Aimée. O seu compositor, Michel Legrand, acabaria por ser uma personalidade decisiva na consolidação do cinema de Demy, compondo, justamente, as bandas sonoras de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo e As Donzelas de Rochefort.
O que distingue o primeiro filme das matrizes tradicionais do musical é a sua estrutura recitativa. Não encontramos as habituais “interrupções” da acção para que, através do canto, eventualmente da dança, os actores interpretem um “número” autónomo. Um pouco à maneira da ópera, todos os diálogos são cantados, transformando a acção num fascinante “coral” que está longe de ser historicamente abstracto: o romance do par central, interpretado por Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo, está mesmo dramaticamente marcado pelo facto de ele ser mobilizado para combater na guerra da Argélia.
MICHEL LEGRAND
No Festival de Cannes de 1964, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo arrebatou a Palma de Ouro (com o alemão Fritz Lang a presidir ao júri) e, de um momento para o outro, deu a Catherine Deneuve o estatuto de estrela. Demy voltou a convidá-la para o filme seguinte, precisamente As Donzelas de Rochefort, alargando o convite a sua irmã, Françoise Dorléac. Com apenas um ano e meio de diferença de idade (Françoise nasceu em 1942, Catherine em 1943), Demy sugeriu-lhes que representassem um par de gémeas, o que, aliás, se reflectiria numa das mais célebres canções (“Nous sommes deux soeurs jumelles...”) compostas por Legrand.
Os amores e desamores das personagens centrais são de novo encenados através de uma narrativa exuberante em que a música (incluindo a dança) desempenha um papel nuclear. Explicitando as suas raízes criativas, Demy convidou dois americanos a integrar o elenco: o mestre Gene Kelly e George Chakiris (que, em 1961, contracenara com Natalie Wood em West Side Story). Com grande parte das sequências rodadas nas ruas e praças da cidade de Rochefort, o filme persiste como um dos mais perfeitos objectos de toda a história do musical. A sua contagiante felicidade teria como contraponto um acontecimento trágico: no Verão de 1967, cerca de três meses depois da estreia, Françoise Dorléac faleceu num acidente de automóvel.